sábado, 2 de julho de 2016

Guerra dos Marimbondos – PE – (1851-1852)

  A "Guerra dos Marimbondos" foi um levante de homens livres e pobres, camponeses  ou agricultores de subsistência, na sua maioria, inconformados e alarmados com a promulgação, em 1851, do Regulamento do Registro dos Nascimentos e Óbitos no Império e, em menor grau, da Lei do censo. 

O Registro foi rapidamente apelidado de "Lei do Cativeiro", pela crença popular de que, coincidindo com as leis que determinavam o fim da importação de mão de obra africana escrava, destinava-se na verdade a recuperar para o escravismo uma ampla camada da população que não tinha, até então, sido objeto da atenção por parte do Estado ou dos proprietários das Plantations açucareiras da zona da mata nordestina.

No Brasil, não bastava ser livre: era preciso garantir a manutenção da liberdade. A escravização ilegal de homens e mulheres ocorria, e muitas vezes acontecia sob as barbas de autoridades públicas. Foi neste contexto que um boato se espalhou como pólvora: a nova lei do Registro Civil, de 1851, faria parte de um plano do governo para escravizar os filhos dos negros livres. A revolta tomou conta do povo e deu origem à Guerra dos Marimbondos.

 O “sul quer escravizar os filhos do norte”, diziam. As autoridades ainda tentavam explicar o objetivo da nova legislação: promover um Censo do Império a fim de programar as futuras políticas públicas. Mas o histórico de liberdades instáveis e de conivência dos agentes da lei com a escravização ilegal só alimentava os rumores. O povo não deixou barato. Muitas mulheres pegaram em armas e saíram às ruas gritando, dispostas a dar a vida para impedir que seus filhos fossem registrados como escravos. 

Um dos lugares onde isso ocorreu foi em Bananeiras, no agreste paraibano, quando as mulheres “armadas de pedras esperavam que nas missas conventuais das capelas se lesse a 'Lei da escravidão' para romperem-na”. O chefe de Polícia da Paraíba não conteve o seu espanto ao relatar: “até as mulheres!”. A autoridade policial de Alagoas compartilhou do mesmo sentimento ao contar sobre o ocorrido em Lage do Canhoto: “até as mulheres dos sediciosos apresentaram-se munidas de armas ofensivas gritando que o fim da Lei era cativá-los”. 

Um dos fatores que mais impressionam na revolta popular também conhecida como Ronco da Abelha foi o potencial de adesão. Em Lage do Canhoto, por exemplo, o subdelegado foi enfrentar os insurgentes com 20 soldados armados. Mas para sua surpresa, no momento do confronto, vários mudaram de lado, obrigando-o a adotar uma postura “branda para dispersar a reunião”. Outras autoridades no interior de Pernambuco e da Paraíba enviaram relatos semelhantes. 

 Foi uma revolta sem liderança unificada. Mas havia líderes locais, pessoas da confiança do grupo que acabaram assumindo a frente dos acontecimentos. E espalhou-se muito rapidamente, tirando as pessoas dos seus sítios, das suas casas, juntando-as nas ruas dos vilarejos e das cidades de cinco províncias do Império: Pernambuco, Alagoas, Paraíba, Sergipe e Ceará.

  Ficou logo claro ao governo que os rebeldes estavam irredutíveis ao pedirem a suspensão do Decreto do Registro Civil. Desacreditavam de tudo que as autoridades diziam. Vigários, juízes de direito e missionários desdobraram-se para tentar argumentar, sem sucesso. Diziam que o povo estava “desenfreado”. 

 O modo de luta foi semelhante nas diversas localidades. A primeira manifestação aconteceu em Mundahu Mirim (atual Santana do Mundaú), em Alagoas. Pouco depois, a revolta aparecia em Pernambuco e na Paraíba. Homens armados reuniam-se, rasgavam o edital afixado na porta da igreja que noticiava a nova lei, gritavam alguma palavra de ordem – que variava entre “Viva a Liberdade!” e “abaixo a lei do cativeiro” – depois dispersavam. No sábado seguinte, repetiam o ato.

Em alguns locais, a demonstração de força ocorria aos domingos e nos dias santos, quando os indignados faziam muito barulho durante as missas. As feiras também eram locais escolhidos para “as vozerias”. 

Na segunda quinzena de dezembro, a revolta foi esquentando, pois a data marcada para a lei começar a valer era 1o. de janeiro. No último mês do ano, as ruas da povoação de Rosário de Cima foram ocupadas por três dias. Jozé Ribeiro Aranha (tanoeiro) e Luiz (carpina) comandavam um grupo que, armado e tocando viola, percorria o caminho: eles davam vivas, cantavam e recebiam aplausos.

Nos primeiros dias de janeiro, algumas importantes cidades também foram tomadas pelos rebeldes. Em Limoeiro, eram 500 armados. Em Pau d’Alho, o número chegou a 2 mil. As autoridades foram presas e fugiram, enquanto famílias de senhores de engenho foram se esconder nas matas. 

 Os documentos falam da participação das mulheres nas ruas de Porto da Folha, no Sergipe, em Bananeiras, na Paraíba, e em Laje do Canhoto, em Alagoas. Certamente também estiveram em Pernambuco, onde a revolta foi muito forte, mas talvez as autoridades tenham se calado. Os registros são lacunares. 

Os agentes de governo deixaram informações genéricas sobre os participantes da guerra. Classificavam aquilo tudo simplesmente como revolta do “povo”, e acrescentavam  adjetivos preconceituosos: “povo mais miúdo”, “mais ignorante”, “baixo”, “sedicioso”. Muitos também especificaram, nas diversas províncias, que as manifestações foram formadas sobretudo por “gente de cor”. 

 Em Pernambuco, um padre foi se queixar a um juiz de direito. Relatou que os revoltosos armados, e “de cor”, diziam preferir nunca batizar seus filhos a terem de se submeter a essa lei. A rebeldia fazia sentido: o decreto mandava que os párocos só batizassem ou fizessem os rituais de enterro depois da entrega da certidão comprovando que o registro civil havia sido feito. Em uma das freguesias que ficou quase dois meses ocupada pelos insurgentes, a do Bom Jardim, em Limoeiro, “estava espalhado o sistema do Ateísmo, do que me tenho horrorizado”, alertava o juiz local: “os laços sociais serão rompidos”.

Para alguns historiadores, os padres teriam sido os agentes “ocultos” da revolta, pregando para o povo se sublevar. Afinal, a medida atacava a autonomia da Igreja. Os religiosos ficaram com muito medo: templos foram invadidos, vários deles tiveram que se esconder, foram feridos e ameaçados de morte. O povo não estava cumprindo uma pauta da Igreja. Um grupo de revoltosos era, inclusive, ateu. A maioria tinha sua própria maneira de vivenciar a religiosidade. 

Isso não significa que os sacerdotes gostassem do Decreto. No Ceará, reclamaram por escrito. Mas a queixa era justamente por dificultar ainda mais o pouco controle que já tinham sobre a população que vivia “muito sobre si”: batizavam os filhos quando queriam, na maioria das vezes crianças já grandes. Com a nova lei, iam enterrar seus mortos no campo, virar “pagãos, selvagens do mato”. 

Historiadores também disseram que a Guerra dos Marimbondos foi um rescaldo da Revolução Praieira, movimento liberal que ocorreu em Pernambuco entre 1848 e 1850, e que a população foi manipulada. Outros a atribuíram a uma espécie de aversão popular ao Estado e às reformas ditas “modernizadoras”. Mas documentos indicam que a insurgência foi mesmo inteiramente popular, com a sua própria pauta. 

As mulheres foram para as ruas reivindicar a liberdade de suas crianças, pois sabiam que o protesto era uma arma possível nessa luta. Nas décadas anteriores, Pernambuco foi palco de inúmeras revoltas. Mas era um momento da história em que outras práticas já estavam incorporadas. Antes de desocupar Limoeiro, os manifestantes juntaram os vereadores da Câmara Municipal e encaminharam uma representação ao presidente da Província, argumentando pela suspensão do Decreto.

As mulheres, em seu cotidiano, também procuravam os juízes de paz para buscar resolver seus problemas: em alguns casos, encaminhavam petições aos poderes constituídos. Em outros, entravam na Justiça. Não negavam o Estado. Agiam dentro daquele campo de forças, buscando seu espaço. A revolta contra o Registro Civil foi muito pouco violenta: em dois meses de homens armados – por vezes 300, 500 e até 2 mil – causou quatro ou cinco mortes. 

A revolta acabou porque o governo recuou. Em meados de janeiro, o presidente de Pernambuco mandou, temporariamente, voltar à prática antiga. Em Vitória do Santo Antão, em Pernambuco, vendo a situação mais calma, o padre e o juiz de paz decidiram mandar cumprir o decreto. Resultado trágico: mataram o juiz de paz. Ficou claro que seria preciso uma guerra para efetivar a lei. O tenso equilíbrio político, após a pacificação da Praieira, não recomendava, em nenhuma hipótese, essa opção. Melhor, então, suspender o Decreto: em casa de marimbondo não se mexe com vara curta.

MATÉRIA DA REVISTA DE HISTÓRIA DE JUNHO 2015  http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/todas-contra-a-lei

CHALHOUB, Sidney. A força da Escravidão, ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
PALACIOS, Guilhermo. “A Guerra dos Marimbondos, uma revolta camponesa no Brasil escravista (Pernambuco, 1851-1852)”. Almanack Brasiliense, n. 3, maio de 2006.
SENRA, Nelson de Castro. História das estatísticas brasileiras. Vol. 1. Rio de Janeiro: IBGE, 2006 
Imagem: internet

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