Entre 22 e 27 de novembro de 1910, marinheiros,
cabos e sargentos rebelaram-se na cidade do Rio de Janeiro, então Distrito
Federal, contra a situação desumana a que eram submetidos na Marinha do Brasil.
E o caso era
este. Nós, que vínhamos da Europa, em contato com outras marinhas, não podíamos
ainda admitir que na Marinha brasileira o homem tirasse a camisa para ser chibateado
por outro homem, relatou João Cândido, líder do movimento, em depoimento no
Museu da Imagem e do Som.
A expressão “Revolta da Chibata” só foi usada a
partir de 1958, quase meio século depois, quando o jornalista Edmar Morel
lançou um livro com esse título – e que acabou batizando o movimento. A
publicação esteve na lista das obras mais vendidas na época, ao lado de outra
obra: o romance Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado.
Naquela
época, o Rio de Janeiro ainda continuava a exercer, na prática, o papel de
cidade imperial da nação. E tinha fortes traços coloniais e africanos,
sobretudo nos bairros portuários da Saúde e Gamboa – frequentados pela maioria
dos marinheiros, que, somados à área da Praça Onze, formavam o que já foi
chamado de Pequena África carioca. Cortiços, sobrados e construções encravadas
na rocha compunham a região, considerada o berço do samba, e que também abrigou
os primeiros grupos de choro, assim como maxixe.
Ao
mesmo tempo, o Rio de Janeiro se modernizava, com a abertura da Avenida Central
(hoje, Rio Branco), a demolição do Morro do Castelo e a inauguração de prédios
monumentais e europeizados, como o da Biblioteca Nacional e do Theatro
Municipal.
Ao
longo do século XIX, a disciplina na Marinha foi baseada em regras do período
colonial, entre as quais se decretava que os marinheiros seriam “corrigidos por
meio de pancadas de espada e chibatada”.
Raros
eram os jovens que desejavam ser marinheiros naquela época. O baixo salário, as
violências sexuais e as formas de disciplina usadas afastavam os voluntários
para o serviço militar. Os homens eram recrutados à força, nas ruas ou prisões.
Menores pobres, órfãos e desvalidos costumavam ser enviados por pais, juízes e
tutores ao alistamento, encorajados pelo governo, que oferecia o pagamento de
prêmios aos responsáveis dos meninos.
O ESTOPIM DA REVOLTA
A
ideia da rebelião amadureceu entre os marujos por volta de 1908. Da conspiração
à organização, foram feitas tentativas de negociação com as autoridades, até que
em maio de 1910, João Cândido, considerado líder entre os marinheiros, foi
recebido pelo então presidente da República, Nilo Peçanha, e pelo ministro da
Marinha, almirante Alexandrino de Alencar. No entanto, não houve nenhuma medida
concreta das autoridades para atender as demandas.
Em 21 de novembro de 1910, o marujo Marcelino Rodrigues Menezes, depois de ferir um de seus colegas durante uma briga, foi punido
com 250 chibatadas, na presença dos outros marinheiros, dentro do encouraçado
Minas Gerais.
Em 22 de novembro de 1910 a revolta tem início.
Isso foi uma semana após a posse do novo presidente Hermes da
Fonseca, dois mil marinheiros se rebelaram e tomaram quatro navios de guerra na
Baía de Guanabara.
As embarcações de guerra tomadas foram: Bahia, Minas Gerais, São Paulo e Deodoro.
As tripulações se rebelaram aos gritos de “Viva a liberdade!” e “Abaixo a chibata!”.
A cidade estava na mira dos canhões da Marinha e prestes a presenciar o que o
escritor Oswald de Andrade chamou de, "A primeira revolução política que o
Brasil teve nesse século – a do marinheiro João Cândido”.
Durante seis dias, apontaram 80 canhões e ameaçaram
bombardear a cidade, que, na época, contava com 870 mil habitantes.
Marinheiros recebem jornalista para dar seu depoimento
Marinheiro Manoel Gregório do Nascimento, líder da revolta no encouraçado São Paulo |
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ANISTIA
João Cândido lendo o decreto de anistia para seu colegas revoltosos |
Diante
da grave situação, o presidente Hermes da Fonseca e o Congresso Nacional
aceitaram todas as condições. Porém, após os marinheiros terem entregado as
armas e embarcações, o presidente driblou a anistia e assinou um decreto que
permitia a expulsão de todos os marujos cujas presenças fossem julgadas
inconvenientes por seus superiores da Armada.
Isso resultou em 1216 expulsões
(número equivalente a quase metade dos participantes da revolta), centenas de
prisões (acompanhadas de maus-tratos) e um número não contabilizado de mortes.
João Cândido entregando o navio ao comando. |
Apesar
da sede de vingança dos oficiais da Marinha, eles não foram os únicos responsáveis por tais agressões. O governo referendou todos os atos e,
inclusive, promoveu os mais notórios carrascos. A imprensa, até mesmo o jornal
Correio da Manhã, o único dos grandes órgãos que simpatizara com o movimento, incitava à represália contra os marujos. Parte significativa da população
também condenava abertamente o governo por ter concedido anistia.
Diante
desse quadro, no começo de dezembro, os marinheiros fizeram outra revolta na
Ilha das Cobras, desta vez envolvendo as tropas do Batalhão Naval e do navio
Rio Grande do Sul. As embarcações com os marujos da primeira revolta não tiveram
qualquer participação.
Esse segundo levante foi fortemente reprimido pelo
governo, com a prisão de vários marinheiros em celas subterrâneas da Fortaleza
da Ilha das Cobras, com condições de vida desumanas – razão pela qual alguns
prisioneiros faleceram. Outros revoltosos foram enviados para a Amazônia, onde
prestariam trabalhos forçados na produção de borracha.
Durante
a primeira revolta, reconhecido como líder entre os marinheiros, João Cândido
fora chamado de almirante e herói pelo escritor Gilberto Amado, em artigo
publicado no jornal O País. Depois, em 1912, na Gazeta de Notícias, já era
tratado pelo escritor João do Rio como Almirante Negro – apelido pelo qual
ficou conhecido.
Apesar
de não ter participado na segunda rebelião, João Cândido foi preso, sob a
acusação de tê-la liderado. Depois de detido e interrogado, ele foi conduzido à
Ilha das Cobras e jogado com mais 17 marujos em uma solitária, onde foram
tratados de maneira cruel e desumana.
Traumatizado
com as brutalidades sofridas e presenciadas no local, João tinha visões dos
companheiros que não sobreviveram às condições impostas em cárcere e, depois de
examinado por uma junta médica, foi considerado louco e enviado para o Hospital
Nacional dos Alienados, no bairro da Urca – onde hoje funciona um campus da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Lá depois de os médicos constatarem sua sanidade,
foi mandado novamente para a Ilha das Cobras. Apenas em setembro de 1912
conseguiu ser ouvido pelo Conselho de Investigação. Assim como os outros
acusados, João foi absolvido com a ajuda de advogados chamados pela Irmandade
de Nossa Senhora do Rosário, agremiação fundada por escravos alforriados e que
abrigava e protegia cativos na época da escravidão.
Ao sair da cadeia, João soube
que havia sido excluído dos quadros da Marinha de Guerra do Brasil. Conseguiu
trabalho em barcos particulares, como timoneiro e carregador, entre outros. Em
todos esses empregos, foi demitido por pressão de oficiais da Marinha sobre os
patrões. Até que comprou uma modesta embarcação para pescar no centro do Rio, e
vender peixes no mercado do cais Pharoux (Praça XV).
Com a saúde debilitada, João
Cândido faleceu em 1969, no Rio. Edmar Morel, o autor de A Revolta da Chibata,
pronunciou apenas uma frase à beira do túmulo: “Adeus, João Cândido, você
dignificou a espécie humana”.
Em 2008, quase um século depois
da revolta, foi sancionada uma lei concedendo anistia post mortem a ele e
a outros marujos participantes da revolta.
NASCIMENTO, A.P. do. Contra a chibata, canhões.
Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, set. 2007.
SILVA, M. A. da. “Nossa Classe” – Revolta da Chibata na
imprensa operária, Revista Brasileira de História, São Paulo,
2, (3): 33 – 44, mar. 1982.
http://www.arquivoestado.sp.gov.br/exposicao_chibata/
http://www.suapesquisa.com/historiadobrasil/revolta_chibata.htm
http://www.multirio.rj.gov.br/index.php/leia/reportagens-artigos/reportagens/8344-a-revolta-da-chibata
Viva João Cândido e demais revoltosos, em espírito e exemplo, porque os operadores da chibata opressora devem ser extirpados do convívio social habitado pelos que lutam por igualdade, liberdade e justiça.
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