A "Guerra dos
Marimbondos" foi um levante de homens livres e pobres, camponeses ou agricultores de subsistência, na sua maioria,
inconformados e alarmados com a promulgação, em 1851, do Regulamento do
Registro dos Nascimentos e Óbitos no Império e, em menor grau, da Lei do censo.
O Registro foi rapidamente apelidado de "Lei do Cativeiro", pela
crença popular de que, coincidindo com as leis que determinavam o fim da
importação de mão de obra africana escrava, destinava-se na verdade a recuperar
para o escravismo uma ampla camada da população que não tinha, até então, sido
objeto da atenção por parte do Estado ou dos proprietários das Plantations
açucareiras da zona da mata nordestina.
No Brasil, não bastava ser livre: era preciso garantir a manutenção da
liberdade. A escravização ilegal de homens e mulheres ocorria, e muitas vezes
acontecia sob as barbas de autoridades públicas. Foi neste contexto que um
boato se espalhou como pólvora: a nova lei do Registro Civil, de 1851, faria
parte de um plano do governo para escravizar os filhos dos negros livres. A
revolta tomou conta do povo e deu origem à Guerra dos Marimbondos.
O “sul quer escravizar os filhos do norte”, diziam. As autoridades
ainda tentavam explicar o objetivo da nova legislação: promover um Censo do
Império a fim de programar as futuras políticas públicas. Mas o histórico de
liberdades instáveis e de conivência dos agentes da lei com a escravização
ilegal só alimentava os rumores. O povo não deixou barato. Muitas mulheres
pegaram em armas e saíram às ruas gritando, dispostas a dar a vida para impedir
que seus filhos fossem registrados como escravos.
Um dos lugares onde isso ocorreu foi em Bananeiras, no agreste
paraibano, quando as mulheres “armadas de pedras esperavam que nas missas conventuais
das capelas se lesse a 'Lei da escravidão' para romperem-na”. O chefe de
Polícia da Paraíba não conteve o seu espanto ao relatar: “até as mulheres!”. A
autoridade policial de Alagoas compartilhou do mesmo sentimento ao contar sobre
o ocorrido em Lage do Canhoto: “até as mulheres dos sediciosos apresentaram-se
munidas de armas ofensivas gritando que o fim da Lei era cativá-los”.
Um dos fatores que mais impressionam na revolta popular também conhecida
como Ronco da Abelha foi o potencial de adesão. Em Lage do Canhoto, por
exemplo, o subdelegado foi enfrentar os insurgentes com 20 soldados armados.
Mas para sua surpresa, no momento do confronto, vários mudaram de lado,
obrigando-o a adotar uma postura “branda para dispersar a reunião”. Outras
autoridades no interior de Pernambuco e da Paraíba enviaram relatos
semelhantes.
Foi uma revolta sem liderança unificada. Mas havia líderes locais,
pessoas da confiança do grupo que acabaram assumindo a frente dos
acontecimentos. E espalhou-se muito rapidamente, tirando as pessoas dos seus
sítios, das suas casas, juntando-as nas ruas dos vilarejos e das cidades de
cinco províncias do Império: Pernambuco, Alagoas, Paraíba, Sergipe e Ceará.
Ficou logo claro ao governo que os rebeldes estavam
irredutíveis ao pedirem a suspensão do Decreto do Registro Civil.
Desacreditavam de tudo que as autoridades diziam. Vigários, juízes de direito e
missionários desdobraram-se para tentar argumentar, sem sucesso. Diziam que o
povo estava “desenfreado”.
O modo de luta foi semelhante nas diversas localidades. A primeira
manifestação aconteceu em Mundahu Mirim (atual Santana do Mundaú), em Alagoas.
Pouco depois, a revolta aparecia em Pernambuco e na Paraíba. Homens armados
reuniam-se, rasgavam o edital afixado na porta da igreja que noticiava a nova
lei, gritavam alguma palavra de ordem – que variava entre “Viva a Liberdade!” e
“abaixo a lei do cativeiro” – depois dispersavam. No sábado seguinte, repetiam
o ato.
Em alguns locais, a demonstração de força ocorria aos domingos e
nos dias santos, quando os indignados faziam muito barulho durante as missas.
As feiras também eram locais escolhidos para “as vozerias”.
Na segunda quinzena
de dezembro, a revolta foi esquentando, pois a data marcada para a lei começar
a valer era 1o. de janeiro. No último mês do ano, as ruas da povoação de
Rosário de Cima foram ocupadas por três dias. Jozé Ribeiro Aranha (tanoeiro) e Luiz
(carpina) comandavam um grupo que, armado e tocando viola, percorria o caminho:
eles davam vivas, cantavam e recebiam aplausos.
Nos primeiros dias de janeiro, algumas importantes cidades também
foram tomadas pelos rebeldes. Em Limoeiro, eram 500 armados. Em Pau d’Alho, o
número chegou a 2 mil. As autoridades foram presas e fugiram, enquanto famílias
de senhores de engenho foram se esconder nas matas.
Os documentos falam da participação das mulheres nas ruas de Porto
da Folha, no Sergipe, em Bananeiras, na Paraíba, e em Laje do Canhoto, em
Alagoas. Certamente também estiveram em Pernambuco, onde a revolta foi muito
forte, mas talvez as autoridades tenham se calado. Os registros são lacunares.
Os agentes de governo deixaram informações genéricas sobre os participantes da
guerra. Classificavam aquilo tudo simplesmente como revolta do “povo”, e
acrescentavam adjetivos preconceituosos: “povo mais miúdo”, “mais
ignorante”, “baixo”, “sedicioso”. Muitos também especificaram, nas diversas
províncias, que as manifestações foram formadas sobretudo por “gente de
cor”.
Em Pernambuco, um padre foi se queixar a um juiz de direito.
Relatou que os revoltosos armados, e “de cor”, diziam preferir nunca batizar
seus filhos a terem de se submeter a essa lei. A rebeldia fazia sentido: o
decreto mandava que os párocos só batizassem ou fizessem os rituais de enterro
depois da entrega da certidão comprovando que o registro civil havia sido
feito. Em uma das freguesias que ficou quase dois meses ocupada pelos
insurgentes, a do Bom Jardim, em Limoeiro, “estava espalhado o sistema do
Ateísmo, do que me tenho horrorizado”, alertava o juiz local: “os laços sociais
serão rompidos”.
Para alguns historiadores, os padres teriam sido os agentes
“ocultos” da revolta, pregando para o povo se sublevar. Afinal, a medida
atacava a autonomia da Igreja. Os religiosos ficaram com muito medo: templos
foram invadidos, vários deles tiveram que se esconder, foram feridos e
ameaçados de morte. O povo não estava cumprindo uma pauta da Igreja. Um grupo
de revoltosos era, inclusive, ateu. A maioria tinha sua própria maneira de
vivenciar a religiosidade.
Isso não significa que os sacerdotes gostassem do Decreto. No
Ceará, reclamaram por escrito. Mas a queixa era justamente por dificultar ainda
mais o pouco controle que já tinham sobre a população que vivia “muito sobre
si”: batizavam os filhos quando queriam, na maioria das vezes crianças já
grandes. Com a nova lei, iam enterrar seus mortos no campo, virar “pagãos,
selvagens do mato”.
Historiadores também disseram que a Guerra dos Marimbondos foi um
rescaldo da Revolução Praieira, movimento liberal que ocorreu em Pernambuco
entre 1848 e 1850, e que a população foi manipulada. Outros a atribuíram a uma
espécie de aversão popular ao Estado e às reformas ditas “modernizadoras”. Mas
documentos indicam que a insurgência foi mesmo inteiramente popular, com a sua
própria pauta.
As mulheres foram para as ruas reivindicar a liberdade de suas crianças,
pois sabiam que o protesto era uma arma possível nessa luta. Nas décadas
anteriores, Pernambuco foi palco de inúmeras revoltas. Mas era um momento da
história em que outras práticas já estavam incorporadas. Antes de desocupar
Limoeiro, os manifestantes juntaram os vereadores da Câmara Municipal e encaminharam
uma representação ao presidente da Província, argumentando pela suspensão do
Decreto.
As mulheres, em seu cotidiano, também procuravam os juízes de paz para
buscar resolver seus problemas: em alguns casos, encaminhavam petições aos
poderes constituídos. Em outros, entravam na Justiça. Não negavam o Estado.
Agiam dentro daquele campo de forças, buscando seu espaço. A revolta contra o
Registro Civil foi muito pouco violenta: em dois meses de homens armados – por
vezes 300, 500 e até 2 mil – causou quatro ou cinco mortes.
A revolta acabou porque o governo recuou. Em meados de janeiro, o
presidente de Pernambuco mandou, temporariamente, voltar à prática antiga. Em
Vitória do Santo Antão, em Pernambuco, vendo a situação mais calma, o padre e o
juiz de paz decidiram mandar cumprir o decreto. Resultado trágico: mataram o
juiz de paz. Ficou claro que seria preciso uma guerra para efetivar a lei. O
tenso equilíbrio político, após a pacificação da Praieira, não recomendava, em
nenhuma hipótese, essa opção. Melhor, então, suspender o Decreto: em casa de
marimbondo não se mexe com vara curta.
MATÉRIA DA REVISTA DE HISTÓRIA DE JUNHO 2015 http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/todas-contra-a-lei
CHALHOUB, Sidney. A força da
Escravidão, ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia
das Letras, 2012.
PALACIOS, Guilhermo. “A
Guerra dos Marimbondos, uma revolta camponesa no Brasil escravista (Pernambuco,
1851-1852)”. Almanack Brasiliense, n. 3, maio de 2006.
SENRA, Nelson de Castro.
História das estatísticas brasileiras. Vol. 1. Rio de Janeiro: IBGE, 2006
Imagem: internet
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