terça-feira, 16 de agosto de 2016

Revolta Popular “Carne Sem Osso e Farinha Sem Caroço”(1858)





Instalada concomitantemente à construção da cidade de Salvador, a Casa de Câmara e Cadeia, atual Câmara Municipal de Salvador, teve grande importância para o desenvolvimento e funcionamento da primeira capital do Brasil. A instituição servia de instrumento, tanto para viabilizar a intervenção da coroa portuguesa na colônia, quanto para estabelecer o poder político local. Foi responsável pelo processo de urbanização da cidade, que seguia o modelo arquitetônico de Portugal, assim como pela fiscalização do comércio interno e externo; controle dos preços das mercadorias; higienização da cidade; regulamentação do trabalho livre e a distribuição de alimentos.
Com a Independência do Brasil, em 07 de setembro de 1822, e a instalação dos poderes provinciais, Executivo e Legislativo, a Câmara perde atribuições que ocorrem na sua submissão a estes novos poderes. Contudo, muitas funções exercidas no período colonial foram preservadas, principalmente as questões relacionadas ao cotidiano do município. No dia 12 de janeiro de 1857, a Câmara editou uma  ¹Postura que restringiu a venda da mandioca - gênero alimentício básico da dieta baiana à época - a alguns pontos da cidade. O principal local de venda deste produto era o Celeiro Público, localizado na parte baixa da cidade, entre os prédios da Alfândega - onde hoje está localizado o Mercado Modelo - e o Hospital da Marinha - atual Capitania dos Portos. O objetivo dessa medida era controlar o preço desse alimento que tinha aumentado excessivamente, em virtude da monopolização por mercadores portugueses, que desempenhavam o papel de atravessadores entre os produtores e os comerciantes varejistas. Havia um entendimento de que a venda realizada apenas nesses locais impediria o monopólio, visto que o consumidor teria acesso direto ao produto que chegava do Recôncavo e de outras regiões do estado, e desta forma evitaria que outros custos fossem incorporados ao preço final do produto.
Além dessa questão econômica, a alta no preço da mandioca e a redução da oferta da farinha se intensificaram devido a uma grande seca que assolou todo o estado da Bahia alguns anos antes. Neste período o Presidente da província, José Lins Vieira Cansanção Sinimbu, futuro Visconde de Sinimbu, adepto do liberalismo econômico e a favor da mínima intervenção do Estado na economia, acreditava que através da livre concorrência o preço da mandioca se regularia. Apesar de não dar muito crédito a Postura publicada pela Câmara, Sinimbu acatou-a e lhes cedeu novamente à administração do celeiro público. Mas essa situação logo foi revertida pelos comerciantes que fizeram grande pressão sobre a decisão tomada, resultando na suspensão da norma, sob o argumento de que ela precisaria ser aprovada pelos deputados na Assembléia Provincial. Em decorrência desses fatos foi gerada uma tensão nas relações entre o Poder Provincial e Municipal.
Ocorre que, mesmo após uma reunião, em agosto de 1857, os deputados não conseguem chegar a uma conclusão sobre essa situação e em janeiro de 1858, atendendo ao clamor da população que ainda sofria com a carestia, a Câmara envia um comunicado ao Presidente da província, informando-o que tinha decidido pelo restabelecimento da Postura, mesmo sem o seu consentimento, visto que o prazo estabelecido para a apreciação dos deputados já havia vencido. Em decorrência desta situação, não era raro presenciar embates entre os fiscais da Câmara, que iam às ruas fazer valer a sua decisão, e os policiais à serviço da Presidência, responsáveis por garantir aos comerciantes a liberdade de comercialização deste produto.
A população soteropolitana que não estava alheia a esses acontecimentos, se colocou a favor das decisões vindas da Câmara, pois estas defendiam os seus interesses, quando não permitia que houvesse um descontrole na distribuição e aumento excessivo dos valores dos alimentos. Devido às insatisfações geradas a partir das medidas adotadas, Sinimbu foi se tornando cada vez mais impopular, o que viabilizou a existência de uma oposição organizada, atuando principalmente durante as noites e de maneira anônima, disseminando a sua aversão às posições políticas da presidência, através de ²Pasquins, espalhados pela cidade com ameaças à vida do presidente. É neste cenário que estoura a Revolta da Farinha, também conhecida como motim: “Carne Sem Osso e Farinha Sem Caroço”, que teve seu estopim no dia 28 de fevereiro de 1858, domingo de quaresma.
A mobilização começou com os gritos de socorro que vinham do recolhimento de meninas e moças decentes da Santa Casa da Misericórdia, localizada próximo a Câmara Municipal e ao Palácio do Governo provincial. As recolhidas, descontentes com a nova administração do convento que havia passado para as freiras francesas, estavam sendo acusadas de se rebelarem contra a nova administração, sob punição de serem transferidas para outros conventos da cidade. As moças resistiram à punição, houve conflito físico incluindo agressão por parte das irmãs de caridade e por outros funcionários da Santa Casa. A confusão pôde ser ouvida pela população que havia se concentrado na Igreja da Misericórdia para ouvir o sermão quaresmal. A multidão que resolveu intervir naquela situação, a fim de socorrer às internas, invade a Santa Casa e agride as freiras francesas que foram encaminhadas para o Palácio do Governador com o intuito de serem protegidas da fúria dos populares. Em resposta à essa situação a população se aglomerou na Praça Municipal para protestar contra as freiras. Não demorou muito para que as insatisfações ligadas à carestia da mandioca se tornassem pauta central daquele movimento, que teve como palavra de ordem: “Queremos carne sem osso e farinha sem caroço”.
Em seguida a multidão, inconformada, invadiu a Casa de Câmara e Cadeia. Entraram na sala de sessões e em demonstração ao apoio que davam às Posturas publicadas pelos vereadores, davam vivas à Câmara e ao povo e ao mesmo tempo gritavam: “fora Sinimbu”. No afã dos acontecimentos, houve até mesmo quem subisse à torre e tocasse o sino, e se dirigisse ao Palácio do Governo para apedrejá-lo, destruindo as vidraçarias das janelas. A confusão se instalou, as tropas e a cavalaria foram mobilizadas para dispersar os manifestantes, que por sua vez não conseguiram fugir, pois a saída da praça havia sido bloqueada pelos soldados para evitar que mais gente viesse apoiar a manifestação, o que acabou deixando muitos feridos, dentre eles um oficial.
No dia seguinte, Sinimbu ignorou os acontecimentos passados não tomando nenhuma iniciativa diferente à respeito do preço da farinha de mandioca. Manteve as sessões que iria realizar a eleição de um senador, assim como pôs em votação a revogação da Postura publicada, pela Câmara Municipal, em 1857. A decisão do Presidente foi aprovada por unanimidade, o que só foi possível graças aos vereadores suplentes que haviam substituído àqueles que se pronunciaram contra as ordens de Sinimbu, e ao apoio que ele tinha da Associação Comercial de Salvador.
Enquanto as sessões iam se iniciando, foram chegando populares na Praça Municipal para dar continuidade aos protestos. A população repetiu o feito de invadir a sala onde os vereadores se encontravam e novamente foi posta para fora, bradando que estavam tendo seus direitos como cidadãos negados, pela força militar que havia sido solicitada pelo então Presidente da casa, Joaquim Ernesto de Souza.
A confusão volta à Praça Municipal, muitas pessoas foram presas, outras foram jogadas da ladeira da montanha e outros tantos se dispersaram. Mesmo com a vitória do poder provincial sobre a Câmara e o povo que lhes apoiava, Sinimbu deixa a cidade e parte para o Rio de Janeiro escoltado por sua tropa. Dois meses após o dia 25 de março, quando estava presidindo as manobras militares, da sacada do palácio, no dia do juramento à Constituição do Império, ele sofreu um atentado e foi ferido por um tiro. O Vice-Presidente em exercício, Manoel Messias de Leão, aprovou a Postura da Câmara e a Assembléia Provincial a ratificou em outubro.
O motim de 1858 foi um movimento que deixa em evidência a organicidade da vida política na Bahia, que vinha, desde fins do século XVIII, vivenciando uma sucessão de revoltas, sendo um dos maiores ³food riot que se tem noticias desde então. Entretanto, a carestia não foi o único elemento que atribuiu motricidade a esse motim, estava em jogo também a contestação de direitos políticos que ecoava o processo de construção da cidadania das pessoas pobres e livres da cidade do Salvador.


*Núbia Barbosa de Souza
* Graduanda em História pela Universidade Federal da Bahia – UFBa/ 7º Semestre – Estagiária do Memorial.
¹ Preceito Municipal escrito, que obriga os munícipes a cumprirem certos deveres de ordem pública.
²Jornal ou folheto difamador.
³ Desordem causada pela escassez de víveres e ou encarecimento do custo de vida
Bibliografia: 
REIS, João, AGUIAR, Gabriela. “‘Carne sem osso e farinha sem caroço’: o motim de 1858 contra a carestia na Bahia”. Revista de História (USP), 135 (1996), pp. 133-161.
Sousa, Avanete Pereira, Poder Local e Cotidiano:  A Câmara de Salvador no século XVIII. Dissertação de Mestrado. Salvador, 1996.
Texto retirado na integra do endereço:
http://www.cms.ba.gov.br/memorial_fato_int.aspx?id=14

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