Em 25 de outubro de 1836, uma multidão destruiu o cemitério do Campo
Santo, em Salvador. Inaugurado três dias antes, por uma companhia privada que
teria o monopólio dos enterros por trinta anos. Até aquela data, os baianos
eram enterrados nas igrejas, agora interditadas aos mortos por influência das
ideias higienistas europeias.
Buscando higienizar a cidade, nossos médicos convenceram legisladores e
parte da sociedade de que os “miasmas mefíticos” produzidos pela decomposição
cadavérica atacava a saúde dos vivos. Era então necessário expulsar os mortos
de entre os vivos como parte de um amplo projeto civilizatório. Em 1836, essa
ideologia higienista secular, de inspiração iluminista, entraria em choque com
a mentalidade religiosa tradicional e barroca. O dia do quebra-quebra começara com uma manifestação em frente ao
palácio do governo, convocada pelas irmandades religiosas. Estas tinham entre
suas funções exatamente a organizações dos funerais de seus membros. Desse
singular movimento participaram talvez quatro mil pessoas “de várias classes,
qualidades e sexos”, conforme um contemporâneo, numa cidade de não mais de 66
mil habitantes.
A Cemiterada – como ficou conhecido este levante – evidencia um tipo de
religiosidade e de cultura funerária em que o local do enterro desempenhava um
papel central no projeto de salvação da alma.
Em várias culturas o destino do cadáver serve como modelo para o destino
da alma. No Brasil antigo, o enterro nas igrejas significava estabelecer a
proximidade entre cadáver e imagens divinas como modelo de integração da alma à
corte celestial. A igreja representava uma porta de entrada do paraíso. Além
disso, era o lugar ideal para aguardar a ressurreição prometida para o fim dos
tempos. Mas ser sepultado na igreja também significava uma estratégia de não
romper com o mundo dos vivos, numa sociedade em que vida e morte eram
entendidas como continuidade e não ruptura.
De um modo geral, pessoas de qualquer condição social podiam ser
enterradas nas igrejas, mas lá dentro havia uma hierarquia. Uma primeira
divisão separava os enterros das irmandades. Mas estas, bem como as paróquias,
podiam reclassificar o espaço a elas destinado. Irmãos e paroquianos podiam pagar mais para ser enterrados “das grades
para dentro”, ou seja, além grades que separavam o corpo da igreja do espaço
próximo aos altares. Era uma segurança adicional para a alma do morto, atitude
relacionada à antiquíssima prática medieval de valorizar a sepultura próxima
aos túmulos de santos e mártires cristãos. Os pecadores renitentes podiam
morrer mais descansados, mas tinham que ser pecadores com algum recurso. Porém,
uma vez enterrados, desapareciam as referências individuais sob covas sem
qualquer marca pessoal, às vezes apenas um número. Eram sepulturas da
coletividade, da irmandade, da paróquia.
Só os verdadeiramente poderosos e afluentes ocupavam jazigos
individualizados e perpétuos. Em algumas igrejas ainda se encontram lápides
decoradas com brasões de família, além do registro de títulos estamentais e
funcionais, com evidente objetivo de glorificação do morto. O defunto Bernadino
José de Souza, enterrado no convento de Santa Tereza, anuncia ter sido cavaleiro
da Ordem de Cristo e coronel de regimento das Milícias das Três Vilas de
Cachoeira, Maragogipe e Jaguaripe. Alguns dos proprietários desses túmulos
faziam combinar brasões e locuções piedosas, como o inquilino de uma cova na
capela-mor da mesma igreja: “Jaz aqui o grande pecador Francisco Lamberto.
Indigno provedor-mor da Fazenda Real deste Estado. E das mais ocupasois que
nela sérvio de ano de 1682 thé o de 1704 em que faleceu pede a Quem passar se
lembre de sua alma”.
Mas a maioria das lápides é pobre em informação sobre seus ocupantes,
parecem apenas títulos de propriedade. Nenhum outro defendeu a exclusividade de
seu túmulo tão enfaticamente quanto o enterrado perto ao altar-mor de Santa
Tereza em 1775: “Sepultura própria do Rdo. Conego o Dr. Dezembargador Jozé
Correa da Costa, aqui não se enterrará pessoa alguma”. O epitáfio do
desembargador se destaca como exemplo de isolamento estamental na morte.
Desde meados do século XVIII, algumas igrejas de irmandades mais
abastadas introduziram carneiros para depósito de seus melhores mortos.
As
sepulturas foram assim transferidas dos pavimentos para as cavidades
longitudinais que formavam paredes, geralmente nos subsolos ou pátios das
igrejas. Esse deslocamento físico, além de reclassificar socialmente os mortos,
redefiniu o lugar destes no espaço sagrado e a relação entre vivos e mortos.
Longe das vistas dos vivos, os mortos agora também se separavam dos seus santos
de devoção e do Senhor do altar-mor. A mudança incentivou a separação entre
culto dos mortos e culto divino, o que foi do interesse da Igreja, preocupada
com que a devoção àqueles renovasse noções pagãs de ancestralidade. Os
carneiros representaram um passo importante na transição para o cemitério
extramuro e para uma nova sensibilidade funerária.
Muitos baianos, de diversas categorias sociais, inclusive ex-escravos,
indicavam em testamento a igreja onde desejavam ser enterrados. As capelas de
irmandades e as igrejas paroquiais eram as mais buscadas, a sugerir que o
espírito de comunidade se projetava atém da morte. As pessoas queriam ser
enterrados em território conhecido, no ambiente em que viveram, próximas
daqueles com quem haviam compartilhado a vida.
Atitudes diante da morte traduziam, assim, concepções de vida que
apontavam a paróquia ou a vizinhança como a referência espacial mais
significativa. Jacinta Tereza de São José quis ser enterrada na mesma freguesia
em que vivera, sobretudo na mesma em que nascera: “Quero que meu corpo seja
sepultado na minha freguesia de São Pedro Velho, por me ter batizado nela”,
ditou em seu testamento de 1828. Nascimento e morte, começo e fim, convergiam
para o mesmo lugar, marcando o fechamento do circulo do tempo com uma promessa
de reinício.
A escolha de outras igrejas parece estar ligada a devoções específicas,
mas aqui de novo encontramos a demarcação de uma territorialidade doméstica. O
capitão José Pestana, em 1826, apresentou duas opções, o convento do Carmo, se
morresse em Salvador, ou a capela que estava construindo em sua fazenda, se ali
morresse. Num ou noutro caso, registrou com clareza a vontade de ser sepultado
“perto da minha moradia”. A valorização da proximidade entre casa e cova
reitera a concepção de morte como continuidade. Morria-se para a vida eterna.
Esse padrão se confirma nos muitos pedidos de reunião familiar na morte.
Maridos e esposas pediam para ser enterrados juntos, às vezes correndo o risco
de enfrentar situações embaraçosas no além. Viúvo três vezes, o tenente coronel
português Innocêncio José da Costa, em 1804, indicou para seu enterro a Ordem
Terceira do Carmo, “donde se acham sepultadas minhas mulheres com que fui
casado”. Caso não fosse para lá, seu corpo deveria ser enterrado na capela dos
Aflitos, “em uma sepultura que fique no meio da porta principal da igreja para
quem entrar nela se lembrar da minha fragilidade, e de que não fui nada neste
mundo”. A mensagem do tenente-coronel português oscila entre a afetividade
pessoal, a que deu primazia, e a humildade cristã, que tomou como consolação.
Parecem sinais divergentes. Se tratava de buscar a salvação, a segunda opção
afigura-se mais segura, mas o militar decidira que conquistar a glória celeste
seria reencontrar suas mulheres no outro mundo.
Mas um grande número de testadores preferia reforçar a relação com o
divino. A expressão “das grades para cima” aparece em muitos testamentos. Rita
Constancia dos Anjos foi mais original. Em 1829, pediu ao marido um funeral sem
as “pompas do mundo” e uma cova debaixo da pia de água benta da igreja do
convento de São Francisco. Provavelmente pensou em lavar a alma com os
respingos de água benta sobre sua sepultura, uma fórmula elementar de magia de
contato.
Se podia variar a escolha da companhia, todos queriam enterro no
interior ou pelo menos no adro de uma igreja. Ser enterrado fora desse perímetro
era um grande infortúnio. O destino dos suicidas, criminosos, rebeldes,
excomungados e também de muitos pobres e escravos de Salvador era o cemitério
do Campo da Pólvora. Para ali seguiam eles no “banguê”, o mais inferior dos
esquifes de aluguel da Santa Casa de Misericórdia.
A origem do cemitério do Campo da Pólvora é incerta. Várias leis
municipais do século XVIII mencionam que se destinava ao enterro de “negros
pagãos”. Elas obrigavam os responsáveis pela limpeza pública de ali enterrá-los
para evitar “corrupção nos ares, ou os cães despedaçarem os corpos como se tem
achado por várias vezes”. O enterro de africanos pagãos equivalia à remoção de
lixo. A preocupação da Câmara em bem enterrá-los não objetivava dar-lhes
sepultura descente, mas evitar a disseminação de doenças.
Dezenas de tombados na rebelião dos negros muçulmanos, em 1835, foram
ali sepultados, e de modo tão precário que se temeu uma epidemia. Já mortos, os
muçulmanos continuavam ameaçando os brancos. E os brancos ameaçando os
africanos mortos ao negar que tivessem sepultura em solo sagrado. Mais da
metade dos 1,2 mil escravos falecidos em Salvador em 1835-36 foram para
sepulturas no Campo da Pólvora.
O temor de acabarem nesse cemitério levou numerosos escravos a se
associarem a irmandades, algumas delas formadas por africanos da mesma etnia,
com vistas a um local adequado para o enterro. Mas não só os negros se opuseram
ao Campo Santo. A Cemiterada mobilizou brancos e negros na defesa de antigas
tradições fúnebres. O que se pode dizer é que uns e outros tinham projetos
diferentes para uma mesma revolta. Enquanto os brancos pensavam em ver
reproduzidos no além os privilégios aqui desfrutados, os escravos investiam na
possibilidade de um melhor lugar no outro mundo, depois de aqui haverem ocupado
o último. Todos, entretanto, seguiam aquele impulso básico, a que Freud se
refere, de “eliminar da morte seu significado de eliminação da vida”. Essa era
a lógica indisputável da cultura funerária de nossos antepassados. Essa a
convicção que os rebeldes da Cemiterada guardavam mais fundo em suas almas.
Texto do site: http://www.bvconsueloponde.ba.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=53
Fonte: REIS, João José, A MORTE É UMA FESTA, Companhia da Letras, 1991
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