Instalada concomitantemente
à construção da cidade de Salvador, a Casa de Câmara e Cadeia, atual Câmara
Municipal de Salvador, teve grande importância para o desenvolvimento e
funcionamento da primeira capital do Brasil. A instituição servia de instrumento,
tanto para viabilizar a intervenção da coroa portuguesa na colônia, quanto para
estabelecer o poder político local. Foi responsável pelo processo de
urbanização da cidade, que seguia o modelo arquitetônico de Portugal, assim
como pela fiscalização do comércio interno e externo; controle dos preços das
mercadorias; higienização da cidade; regulamentação do trabalho livre e a
distribuição de alimentos.
Com a Independência do
Brasil, em 07 de setembro de 1822, e a instalação dos poderes provinciais,
Executivo e Legislativo, a Câmara perde atribuições que ocorrem na sua
submissão a estes novos poderes. Contudo, muitas funções exercidas no período
colonial foram preservadas, principalmente as questões relacionadas ao
cotidiano do município. No dia 12 de janeiro de 1857, a Câmara editou uma
¹Postura que restringiu a venda da mandioca - gênero alimentício básico da
dieta baiana à época - a alguns pontos da cidade. O principal local de venda
deste produto era o Celeiro Público, localizado na parte baixa da cidade, entre
os prédios da Alfândega - onde hoje está localizado o Mercado Modelo - e o
Hospital da Marinha - atual Capitania dos Portos. O objetivo dessa medida era
controlar o preço desse alimento que tinha aumentado excessivamente, em virtude
da monopolização por mercadores portugueses, que desempenhavam o papel de
atravessadores entre os produtores e os comerciantes varejistas. Havia um
entendimento de que a venda realizada apenas nesses locais impediria o
monopólio, visto que o consumidor teria acesso direto ao produto que chegava do
Recôncavo e de outras regiões do estado, e desta forma evitaria que outros
custos fossem incorporados ao preço final do produto.
Além dessa questão
econômica, a alta no preço da mandioca e a redução da oferta da farinha se
intensificaram devido a uma grande seca que assolou todo o estado da Bahia
alguns anos antes. Neste período o Presidente da província, José Lins Vieira
Cansanção Sinimbu, futuro Visconde de Sinimbu, adepto do liberalismo econômico
e a favor da mínima intervenção do Estado na economia, acreditava que através
da livre concorrência o preço da mandioca se regularia. Apesar de não dar muito
crédito a Postura publicada pela Câmara, Sinimbu acatou-a e lhes cedeu
novamente à administração do celeiro público. Mas essa situação logo foi
revertida pelos comerciantes que fizeram grande pressão sobre a decisão tomada,
resultando na suspensão da norma, sob o argumento de que ela precisaria ser
aprovada pelos deputados na Assembléia Provincial. Em decorrência desses fatos
foi gerada uma tensão nas relações entre o Poder Provincial e Municipal.
Ocorre que, mesmo após uma
reunião, em agosto de 1857, os deputados não conseguem chegar a uma conclusão
sobre essa situação e em janeiro de 1858, atendendo ao clamor da população que
ainda sofria com a carestia, a Câmara envia um comunicado ao Presidente da
província, informando-o que tinha decidido pelo restabelecimento da Postura,
mesmo sem o seu consentimento, visto que o prazo estabelecido para a apreciação
dos deputados já havia vencido. Em decorrência desta situação, não era raro
presenciar embates entre os fiscais da Câmara, que iam às ruas fazer valer a
sua decisão, e os policiais à serviço da Presidência, responsáveis por garantir
aos comerciantes a liberdade de comercialização deste produto.
A população soteropolitana
que não estava alheia a esses acontecimentos, se colocou a favor das decisões
vindas da Câmara, pois estas defendiam os seus interesses, quando não permitia
que houvesse um descontrole na distribuição e aumento excessivo dos valores dos
alimentos. Devido às insatisfações geradas a partir das medidas adotadas,
Sinimbu foi se tornando cada vez mais impopular, o que viabilizou a existência
de uma oposição organizada, atuando principalmente durante as noites e de
maneira anônima, disseminando a sua aversão às posições políticas da
presidência, através de ²Pasquins, espalhados pela cidade com ameaças à vida do
presidente. É neste cenário que estoura a Revolta da Farinha, também conhecida
como motim: “Carne Sem Osso e Farinha Sem Caroço”, que teve seu estopim no dia
28 de fevereiro de 1858, domingo de quaresma.
A mobilização começou com os
gritos de socorro que vinham do recolhimento de meninas e moças decentes da
Santa Casa da Misericórdia, localizada próximo a Câmara Municipal e ao Palácio
do Governo provincial. As recolhidas, descontentes com a nova administração do
convento que havia passado para as freiras francesas, estavam sendo acusadas de
se rebelarem contra a nova administração, sob punição de serem transferidas
para outros conventos da cidade. As moças resistiram à punição, houve conflito
físico incluindo agressão por parte das irmãs de caridade e por outros
funcionários da Santa Casa. A confusão pôde ser ouvida pela população que havia
se concentrado na Igreja da Misericórdia para ouvir o sermão quaresmal. A
multidão que resolveu intervir naquela situação, a fim de socorrer às internas,
invade a Santa Casa e agride as freiras francesas que foram encaminhadas para o
Palácio do Governador com o intuito de serem protegidas da fúria dos populares.
Em resposta à essa situação a população se aglomerou na Praça Municipal para
protestar contra as freiras. Não demorou muito para que as insatisfações
ligadas à carestia da mandioca se tornassem pauta central daquele movimento, que
teve como palavra de ordem: “Queremos carne sem osso e farinha sem caroço”.
Em seguida a multidão,
inconformada, invadiu a Casa de Câmara e Cadeia. Entraram na sala de sessões e
em demonstração ao apoio que davam às Posturas publicadas pelos vereadores, davam
vivas à Câmara e ao povo e ao mesmo tempo gritavam: “fora Sinimbu”. No afã dos
acontecimentos, houve até mesmo quem subisse à torre e tocasse o sino, e se
dirigisse ao Palácio do Governo para apedrejá-lo, destruindo as vidraçarias das
janelas. A confusão se instalou, as tropas e a cavalaria foram mobilizadas para
dispersar os manifestantes, que por sua vez não conseguiram fugir, pois a saída
da praça havia sido bloqueada pelos soldados para evitar que mais gente viesse
apoiar a manifestação, o que acabou deixando muitos feridos, dentre eles um
oficial.
No dia seguinte, Sinimbu
ignorou os acontecimentos passados não tomando nenhuma iniciativa diferente à
respeito do preço da farinha de mandioca. Manteve as sessões que iria realizar
a eleição de um senador, assim como pôs em votação a revogação da Postura publicada,
pela Câmara Municipal, em 1857. A decisão do Presidente foi aprovada por
unanimidade, o que só foi possível graças aos vereadores suplentes que haviam
substituído àqueles que se pronunciaram contra as ordens de Sinimbu, e ao apoio
que ele tinha da Associação Comercial de Salvador.
Enquanto as sessões iam se
iniciando, foram chegando populares na Praça Municipal para dar continuidade
aos protestos. A população repetiu o feito de invadir a sala onde os vereadores
se encontravam e novamente foi posta para fora, bradando que estavam tendo seus
direitos como cidadãos negados, pela força militar que havia sido solicitada
pelo então Presidente da casa, Joaquim Ernesto de Souza.
A confusão volta à Praça
Municipal, muitas pessoas foram presas, outras foram jogadas da ladeira da
montanha e outros tantos se dispersaram. Mesmo com a vitória do poder
provincial sobre a Câmara e o povo que lhes apoiava, Sinimbu deixa a cidade e
parte para o Rio de Janeiro escoltado por sua tropa. Dois meses após o dia 25
de março, quando estava presidindo as manobras militares, da sacada do palácio,
no dia do juramento à Constituição do Império, ele sofreu um atentado e foi
ferido por um tiro. O Vice-Presidente em exercício, Manoel Messias de Leão,
aprovou a Postura da Câmara e a Assembléia Provincial a ratificou em outubro.
O motim de 1858 foi um
movimento que deixa em evidência a organicidade da vida política na Bahia, que
vinha, desde fins do século XVIII, vivenciando uma sucessão de revoltas, sendo
um dos maiores ³food riot que se tem noticias desde então. Entretanto, a
carestia não foi o único elemento que atribuiu motricidade a esse motim, estava
em jogo também a contestação de direitos políticos que ecoava o processo de
construção da cidadania das pessoas pobres e livres da cidade do Salvador.
*Núbia Barbosa de Souza
* Graduanda em História pela Universidade Federal da
Bahia – UFBa/ 7º Semestre – Estagiária do Memorial.
¹ Preceito Municipal escrito, que obriga os munícipes a cumprirem certos deveres de ordem pública.
²Jornal ou folheto difamador.
³ Desordem causada pela escassez de víveres e ou encarecimento do custo de vida
¹ Preceito Municipal escrito, que obriga os munícipes a cumprirem certos deveres de ordem pública.
²Jornal ou folheto difamador.
³ Desordem causada pela escassez de víveres e ou encarecimento do custo de vida
Bibliografia:
REIS, João, AGUIAR, Gabriela. “‘Carne sem osso e farinha
sem caroço’: o motim de 1858 contra a carestia na Bahia”. Revista de História
(USP), 135 (1996), pp. 133-161.
Sousa, Avanete Pereira, Poder Local e Cotidiano: A Câmara de Salvador no século XVIII. Dissertação de Mestrado. Salvador, 1996.
Sousa, Avanete Pereira, Poder Local e Cotidiano: A Câmara de Salvador no século XVIII. Dissertação de Mestrado. Salvador, 1996.
Texto
retirado na integra do endereço:
http://www.cms.ba.gov.br/memorial_fato_int.aspx?id=14